14/05/2008

Capital


Perdeu a noção do que é o preto e o branco, do que é abrir uma embalagem e fechá-la, do que é correr e parar, até mesmo do que é alcançar ou deixar a pedra cair. Mas acima de tudo sabia perfeitamente que o bem e o mal se tinham fundido assim como a morte e a vida.

Olhou-se ao espelho e não compreendeu o porquê de dois olhos, um nariz e uma boca... Sebem, que uma vez lhe tinham contado que os homens tinham dois olhos e uma boca para observarem mais e falarem menos... Tal não foi o impacto disto que desde aí ele nunca mais se atrevera a falar para não estar calado. Continuou a olhar-se no espelho e continuava, aquela sensação... Sensação de obscuridade ténue, de um nojo atractivo...

Afinal quem somos nós? Porquê dois braços e duas pernas? Para percorrermos o mundo a realizar feitos memoráveis com as nossas próprias mãos ou para sermos atados pés e mãos até percorrer a linha que é chamada de normal?

Havia nele restos, amostras, traços de criança, embora o seu olhar fosse duro, embora impenetrável, vago, vazio... Um dia disseram-lhe que nem mesmo atingindo os noventa anos ele iria deixar de parecer por vezes um bebé a precisar de um bem essencial... (E ele que julgava impor respeito ao mundo com o seu aspecto duro, inflexível...) Tocava agora na sua cara arredondada, e então lembrou-se que nem mesmo o espelho lhe mostrava a sua imagem como os outros viam, nem a sua nem a de ninguém... Mas o que é que isso importava realmente? O seu fundo nada tinha a ver com a infantilidade... Era assim que queria ficar o resto da sua vida, a olhar-se, que mais poderia importar?



1 comentário:

Balbino disse...

Vive-se cada vez menos para nós.

Grande texto! Fazes-me sentir orgulhoso!